A Aplicação "Não Tão Doméstica" da Legislação Penal dos EUA à Atos Praticados na América Latina
Resumo
Situação Atual: A despeito de estarem presentes ou não fisicamente (com escritórios e/ou funcionários) nos Estados Unidos da América ("EUA"), empresas da América Latina e/ou outras regiões constantemente fazem transações financeiras envolvendo o sistema bancário dos EUA. Com isso, tais empresas podem estar sujeitas a investigações e processos decorrentes da violação de certas leis penais dos EUA, incluindo leis que proíbem fraude e corrupção.
Resultado: Promotores dos EUA têm indicado estarem prontos para investigar e processar alvos estrangeiros. A recente prisão do ex-Ministro da Defesa do México, Salvador Cienfuegos Zepeda, é apenas o exemplo mais recente e conhecido disso, embora novidades no caso de corrupção da FIFA também demonstrem o amplo alcance das leis dos EUA.
Futuro: Ao elaborar e implementar os seus programas de compliance e conduzir os seus negócios, as empresas que se utilizam do sistema bancário dos EUA devem conhecer o alcance e escopo das leis penais daquele país, incluindo não apenas o Foreign Corrupt Practices Act ("FCPA"), mas, também, a lei sobre fraude discutida abaixo.
Ex-Ministro da Defesa do México Preso, Porém Denúncia Posteriormente Rejeitada
A prisão ocorrida em outubro, em Los Angeles, de Salvador Cienfuegos Zepeda, Ministro da Defesa do México de 2012 à 2018, é ilustrativa da forma como o direito penal dos EUA pode se aplicar a pessoas agindo fora daquele país. Cienfuegos Zepeda foi acusado de conspirar para o tráfico de entorpecentes e lavar o dinheiro decorrente desta atividade. A denúncia apresentada ao Tribunal Federal de Nova York alega a ocorrência de atos de conspiração dentro de Nova York e em outros locais, sem identificar condutas específicas. Em 16 de novembro, o Departamento de Justiça dos EUA ("DOJ") pediu a rejeição da denúncia—não em razão da falta de jurisdição dos EUA, mas em deferência à investigação conduzida pelas autoridades mexicanas. Dois dias depois, a corte acolheu o pedido do DOJ.
O caso do ex-Ministro da Defesa do México é apenas o mais recente lembrete a respeito do amplo alcance do direito penal dos EUA—ainda que, em um caso inusitado como este, o DOJ decida mudar de opinião sobre o exercício de sua jurisdição. Este Comentário aborda o alcance da lei penal dos EUA que proíbe "fraudes em transferências eletrônicas referentes a serviços honestos" (ou "honest services wire fraud"), cuja aplicação pode se estender a fraudes e corrupção privada ocorridos fora dos EUA.
Aplicação "Doméstica" da Legislação Penal dos EUA
Os tribunais dos EUA têm decidido com frequência a respeito de quais leis penais se aplicariam de forma "extraterritorial" – ou seja, com alcance fora do território dos EUA – e quais se aplicariam apenas "internamente". A Suprema Corte dos EUA decidiu que, ao interpretar leis penais, os tribunais presumem que tais leis se aplicam apenas internamente, salvo quando a própria lei indica claramente o seu caráter extraterritorial. Algumas leis penais federais, como as leis de combate à lavagem de dinheiro ou o FCPA – ambas abordadas em recente White Paper do Jones Day, claramente indicam a sua aplicação extraterritorial em determinadas circunstâncias.
E quanto ao alcance das leis penais dos EUA que se aplicariam apenas "internamente"? Recente decisão do Tribunal de Apelação em Nova York demonstra o amplo alcance também destas leis.
Lições Recentes do Caso FIFA
A decisão mencionada acima, do caso Estados Unidos v. Napout, envolveu recurso de apelação apresentado por duas pessoas condenadas pelo escândalo de pagamento de propina na FIFA. Um dos réus era o ex-presidente da federação nacional de futebol do Paraguai; o outro, ex-chefe da federação nacional de futebol brasileira. Os dois réus foram acusados de participar, em conjunto com outros indivíduos, de esquema criado para aceitar o pagamento de milhões de dólares em propinas por empresas de mídia e marketing esportivo, em troca da concessão de direitos de transmissão e marketing de torneios de futebol. Os réus não foram acusados de violar leis sobre o pagamento de propina, mas de conspirar para cometer "fraude em transferências eletrônicas" – isto é, fraude envolvendo o uso de transferências ou comunicações eletrônicas. Segundo teoria conhecida como fraude em transferências eletrônicas referentes a "serviços honestos", a acusação alegou que, ao aceitar propinas, os réus violaram os seus deveres fiduciários para com os seus empregadores. "Em resumo, eles fraudaram os seus empregadores, impedindo-os de receberem os seus serviços "honestos", ou seja, serviços sem o pagamento de propina."
Em apelação, os réus argumentaram que a lei sobre fraude em transferências eletrônicas não se aplicava à conduta deles ocorrida fora dos EUA. Um dos réus, inclusive, fez a seguinte pergunta: "Com base em qual autoridade os Estados Unidos pretendem supervisionar a relação entre um empregado paraguaio e o seu empregador paraguaio, e um suposto esquema envolvendo sul-americanos que praticamente ocorreu em sua totalidade na América do Sul"? Os réus também argumentaram que as condutas em questão – que caracterizavam atos de corrupção privada, e não propina envolvendo funcionário público – eram lícitas de acordo com as leis dos países sul-americanos nos quais tais condutas ocorreram.
O Tribunal de Apelação aceitou o argumento de que a lei federal de fraude em transferências eletrônicas se aplicava apenas "internamente", e não "extraterritorialmente". Contudo, o Tribunal decidiu pela existência de atos suficientes ocorridos nos EUA e confirmou as condenações. Um réu recebeu propina em sua conta bancária localizada em Nova York e usou um cartão de débito desta conta; o outro recebeu propina em espécie proveniente de contas bancárias localizadas nos EUA, que foi transferida por meio de um doleiro na Argentina antes de ser entregue em mãos ao réu. O Tribunal também fez referência a presentes – tais como ingressos a shows e o uso de uma casa de férias – pagos com dinheiro transferido de uma conta bancária nos EUA. Como o pagamento das propinas a cada um dos réus envolveu o uso de transferências eletrônicas através do sistema bancário dos EUA, o Tribunal decidiu que os réus poderiam ser condenados com base em uma aplicação puramente "doméstica" da lei sobre fraude em transferências eletrônicas.
O Tribunal de Apelação também rejeitou o argumento dos réus de que eles tiveram o seu direito de apresentar provas a respeito da licitude dos pagamentos segundo as leis do Paraguai e do Brasil indevidamente cerceado durante o julgamento. O Tribunal explicou que os deveres fiduciários dos réus para com os seus empregadores não se baseavam nas leis do Paraguai e do Brasil, mas, sim, nos códigos de ética da FIFA e da Confederação Sul-Americana de Futebol, da qual eram membros.
Em suma, o Tribunal decidiu que os réus foram devidamente condenados – em razão de um crime previsto em legislação dos EUA de aplicação "doméstica" – uma vez que a utilização do sistema bancário dos EUA foi essencial para o esquema de corrupção privada, a despeito de eventual análise sobre a licitude de tais atos com base nas leis dos locais de residência e trabalho dos réus.
Principais Takeaways
- As leis penais dos EUA podem ser aplicadas a transações envolvendo o sistema financeiro dos EUA, ainda que todas as outras condutas relacionadas ao ilícito penal em questão ocorram fora de lá.
- A lei de fraude em transferências eletrônicas dos EUA permite que promotores daquele país persigam agressivamente não apenas a corrupção envolvendo funcionários públicos dos EUA ou estrangeiros, mas, também, outras condutas como a corrupção privada, independentemente de essa conduta ser proibida ou não no país onde ela ocorrer.
- Os promotores dos EUA estão prontos, dispostos e aptos a perseguir tais casos contra alvos estrangeiros. Portanto, qualquer empresa ou pessoa que utilize o sistema bancário dos EUA como parte de um esquema ilegal deve saber que isso pode acarretar processo fundado em leis penais dos EUA. Isso deve ser levado em consideração pelas empresas ao elaborarem os seus programas de compliance anticorrupção e na condução diária de seus negócios.